“Conheci
um cara, que se chama Jesus
Por
expor suas ideias, enforcaram-no na cruz
Jesus
Negão, sangue bão”
Essa
é o primeiro refrão da paródia “Jesus Negão”, criada pelo grupo Libera o Badaró
(LoB) a partir da música “Jesus Chorou”, do grupo de rap nacional Racionais
MC’s. Apesar da brincadeira, para
muitos de mal gosto, as duas canções têm muito em comum. Os Racionais trazem em suas
letras a vida das grandes periferias, onde preconceito, violência e pobreza se misturam numa
amálgama reforçada por políticas públicas que fecham os olhos para a situação
de miséria em que boa parte da população brasileira vive.
Em
sua pilhéria, o LoB (intencionalmente ou não) satiriza as diversas pesquisas relacionadas às divisões étnicas
brasileiras, cuja população altamente miscigenada ainda insiste em
classificar-se como branca, parda e relutantemente negra.
Sob
certo ponto de vista, as duas
canções versam sobre intolerância. A simples incapacidade do ser humano de não
aceitar o próximo como membro da mesma espécie. É prepotente a ponto de declarar-se
imagem e semelhança de deus, mas não humilde para aceitar dividir algo com quem
não compartilha o mesmo
credo, cor de pele ou bandeira (seja da nação ou do time de futebol preferido).
A
tolerância é o grande desafio deste mundo globalizado. Antes nos deslumbravam
os primeiros contatos com civilizações desconhecidas. A admiração deu lugar às comparações quanto a quem era superior.
Por fim, a proximidade de convivência despertou rancores despropositados e
injustificáveis. Então somos apresentados às diferentes formas de preconceito, partindo das étnicas e passando pela
homofobia, xenofobia e a intolerância religiosa.
Um
caso bem ilustrativo se passou na França do século XVII. Vivendo num reino
declaradamente católico, o protestante huguenote
Jean Calas foi preso acusado do assassínio de seu filho Marc-Antoine. O jovem
pretendia converter-se ao catolicismo, mas, por razões desconhecidas, cometera suicídio por
enforcamento. Como a prática era largamente condenada, ao encontrarem o corpo
do rapaz, modificaram a cena para que parecesse
um crime. Considerado um fanático anti-católico, Calas foi condenado a ser
quebrado vivo, estrangulado e atirado a uma fogueira. Até o fim, às portas da morte, Calas jurou inocência. Apenas 3 anos depois, foi declarado inocente das acusações.
Motivado
pela injustiça cometida, o brilhante escritor iluminista François Marie Arouet,
mais conhecido como Voltaire, moveu
uma grande campanha a fim de inocentar seu amigo e despertar a atenção da
sociedade quanto ao clima de repressão vivido na Europa. Voltaire defendia a
liberdade de pensamento, religião e ideias. Foi o autor da célebre frase:
“posso não concordar com o que dizes, mas lutarei até o fim pelo direito de
dizê-las”. No ano seguinte a execução de Calas, lançou o livro "Tratado Sobre a
Tolerância", convidando à tolerância os
religiosos. Em um dos trechos, Voltaire diz: “a veneração ao prepúcio sagrado era
uma prática muito mais razoável que a de detestar e perseguir o próximo”.
Vivendo
a era do Iluminismo, quando o homem passava a ocupar o centro do universo,
ainda sob influência da reforma protestante, que incendiava a Europa em conflitos
religiosos, as práticas medievais da Igreja de Roma (com suas relíquias e
indulgências) pareciam inofensivas em vista aos genocídios cometidos em nome da
fé.
A
parte o desabafo de Voltaire, chama atenção a veneração ao prepúcio sagrado.
Foi meu amigo Márcio Anderson quem me apresentou a milagrosa relíquia. Lendo a
respeito, cheguei à hipótese, defendida pelo LoB: Jesus era Negão!
Vamos
aos fatos.
De
acordo com a lenda, o imperador do Sacro-Império Romano-Germânico e rei da
França, Carlos Magno, fora presenteado com a sagrada pele por um anjo, tão
piedoso que era o homem. Agradecido, levou a peça à Abadia de Charroux, em seus
territórios. Muitos anos depois, o
prepúcio foi levado para a apreciação do Papa Inocêncio III, que prudentemente resolveu não se declarar
a respeito da veracidade da relíquia.
Como
a história não é regada a bom-senso, no século XVI, o Papa Clemente VII atestou
que o prepúcio era uma relíquia sagrada, fruto do corpo do Cristo, e concedia
indulgências a quem vinha prestar homenagens. O negócio era tão miraculoso que,
em 1527, enquanto o imperador austríaco Carlos V saqueava Roma, alguns dos seus
soldados levaram uma moça virgem até o relicário que guardava o prepúcio e ele
aumentou consideravelmente de volume!
O
certo é que a peça sagrada sumiu, sendo reencontrada apenas em 1856. Nesse ínterim,
outros prepúcios sagrados foram anunciados em diversas localidades: Santiago de
Compostela, Antuérpia, Besançon, Metz, Hildesheim, Calcata... Nesta última, uma
província italiana, até 1983 havia uma procissão anual em que exibiam seu
relicário e o sagrado conteúdo. Então a igreja foi assaltada e sua preciosa
relíquia afanada.
Dentre
as muitas justificativas, há uma que explicaria a existência de tantos
prepúcios sagrados: Jesus era chegado na cor.
Apenas dessa maneira poderia se dar o luxo de dividir sua preciosa
pele entre tantas igrejas e fiéis. Ou isso, ou tudo não passava de engodo! Com
o advento dos avanços científicos e a possibilidade de crítica (livre?), a
Igreja afastou-se do culto as relíquias, exprimindo a opinião de que a
existência do prepúcio não passava de uma lenda, que, no entanto, deverá ser
respeitada.
Vejam
só – tolerância!