segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Jesus, Voltaire e um Prepúcio


“Conheci um cara, que se chama Jesus
Por expor suas ideias, enforcaram-no na cruz
Jesus Negão, sangue bão”

Essa é o primeiro refrão da paródia “Jesus Negão”, criada pelo grupo Libera o Badaró (LoB) a partir da música “Jesus Chorou”, do grupo de rap nacional Racionais MC’s. Apesar da brincadeira, para muitos de mal gosto, as duas canções têm muito em comum. Os Racionais trazem em suas letras a vida das grandes periferias, onde preconceito, violência e pobreza se misturam numa amálgama reforçada por políticas públicas que fecham os olhos para a situação de miséria em que boa parte da população brasileira vive.

Em sua pilhéria, o LoB (intencionalmente ou não) satiriza as diversas pesquisas relacionadas às divisões étnicas brasileiras, cuja população altamente miscigenada ainda insiste em classificar-se como branca, parda e relutantemente negra.

Sob certo ponto de vista, as duas canções versam sobre intolerância. A simples incapacidade do ser humano de não aceitar o próximo como membro da mesma espécie. É prepotente a ponto de declarar-se imagem e semelhança de deus, mas não humilde para aceitar dividir algo com quem não compartilha o mesmo credo, cor de pele ou bandeira (seja da nação ou do time de futebol preferido).

A tolerância é o grande desafio deste mundo globalizado. Antes nos deslumbravam os primeiros contatos com civilizações desconhecidas. A admiração deu lugar às comparações quanto a quem era superior. Por fim, a proximidade de convivência despertou rancores despropositados e injustificáveis. Então somos apresentados às diferentes formas de preconceito, partindo das étnicas e passando pela homofobia, xenofobia e a intolerância religiosa.

Um caso bem ilustrativo se passou na França do século XVII. Vivendo num reino declaradamente católico, o protestante huguenote Jean Calas foi preso acusado do assassínio de seu filho Marc-Antoine. O jovem pretendia converter-se ao catolicismo, mas, por razões desconhecidas, cometera suicídio por enforcamento. Como a prática era largamente condenada, ao encontrarem o corpo do rapaz, modificaram a cena para que parecesse um crime. Considerado um fanático anti-católico, Calas foi condenado a ser quebrado vivo, estrangulado e atirado a uma fogueira. Até o fim, às portas da morte, Calas jurou inocência. Apenas 3 anos depois, foi declarado inocente das acusações.

Motivado pela injustiça cometida, o brilhante escritor iluminista François Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire, moveu uma grande campanha a fim de inocentar seu amigo e despertar a atenção da sociedade quanto ao clima de repressão vivido na Europa. Voltaire defendia a liberdade de pensamento, religião e ideias. Foi o autor da célebre frase: “posso não concordar com o que dizes, mas lutarei até o fim pelo direito de dizê-las”. No ano seguinte a execução de Calas, lançou o livro "Tratado Sobre a Tolerância", convidando à tolerância os religiosos. Em um dos trechos, Voltaire diz: “a veneração ao prepúcio sagrado era uma prática muito mais razoável que a de detestar e perseguir o próximo”.

Vivendo a era do Iluminismo, quando o homem passava a ocupar o centro do universo, ainda sob influência da reforma protestante, que incendiava a Europa em conflitos religiosos, as práticas medievais da Igreja de Roma (com suas relíquias e indulgências) pareciam inofensivas em vista aos genocídios cometidos em nome da fé.

A parte o desabafo de Voltaire, chama atenção a veneração ao prepúcio sagrado. Foi meu amigo Márcio Anderson quem me apresentou a milagrosa relíquia. Lendo a respeito, cheguei à hipótese, defendida pelo LoB: Jesus era Negão!

Vamos aos fatos.

De acordo com a lenda, o imperador do Sacro-Império Romano-Germânico e rei da França, Carlos Magno, fora presenteado com a sagrada pele por um anjo, tão piedoso que era o homem. Agradecido, levou a peça à Abadia de Charroux, em seus territórios. Muitos anos depois, o prepúcio foi levado para a apreciação do Papa Inocêncio III, que prudentemente resolveu não se declarar a respeito da veracidade da relíquia.

Como a história não é regada a bom-senso, no século XVI, o Papa Clemente VII atestou que o prepúcio era uma relíquia sagrada, fruto do corpo do Cristo, e concedia indulgências a quem vinha prestar homenagens. O negócio era tão miraculoso que, em 1527, enquanto o imperador austríaco Carlos V saqueava Roma, alguns dos seus soldados levaram uma moça virgem até o relicário que guardava o prepúcio e ele aumentou consideravelmente de volume!

O certo é que a peça sagrada sumiu, sendo reencontrada apenas em 1856. Nesse ínterim, outros prepúcios sagrados foram anunciados em diversas localidades: Santiago de Compostela, Antuérpia, Besançon, Metz, Hildesheim, Calcata... Nesta última, uma província italiana, até 1983 havia uma procissão anual em que exibiam seu relicário e o sagrado conteúdo. Então a igreja foi assaltada e sua preciosa relíquia afanada.

Dentre as muitas justificativas, há uma que explicaria a existência de tantos prepúcios sagrados: Jesus era chegado na cor. Apenas dessa maneira poderia se dar o luxo de dividir sua preciosa pele entre tantas igrejas e fiéis. Ou isso, ou tudo não passava de engodo! Com o advento dos avanços científicos e a possibilidade de crítica (livre?), a Igreja afastou-se do culto as relíquias, exprimindo a opinião de que a existência do prepúcio não passava de uma lenda, que, no entanto, deverá ser respeitada.

Vejam só – tolerância!

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