segunda-feira, 27 de setembro de 2010

A Farsa do Paraíso


Céu.
               - Criaturas fascinantes estas que habitam a terra firme. Locomovem-se sobre os pés, comunicam-se por sons e usam as mãos para levar os alimentos a boca e elaborar instrumentos.
               - Realmente singular. Percebi também que são capazes de outros prodígios. Especialmente aqueles a que tanto admiras!
               - A que te referes, Lúcifer?
               - Notei que regozijas quando acendem fogueiras e queimam tributos a uma figura mítica com a qual te identificas.
               - Muito perspicazes tuas observações. Mas sinto que há algo mais que te afliges, meu irmão.
               - Também sou afeito a elogios, contudo minha natureza ainda não foi contemplada por estas criaturas. Também receio que algum evento proposital tenha influência direta sobre estes fatos.
               - Permita-me que considere nas tuas conjecturas um tom de acusação?
               - Não se faz necessário. Talvez uma ponta de ciúmes turve meu discernimento.
               - Desconhecia tais sentimentos em nossa comunidade.
               - Sabes que o que se passa com as criaturas terrenas são apenas reflexos das nossas características. O teatro representado por eles nos é interessante porque é uma amostra de nossa natureza. Cada um de nós está transfigurado em algum aspecto de suas capacidades. Veja Rafael, aquele que cura, na figura do xamã. Neste mesmo indivíduo também se apresentam características minhas e tuas, contudo em menor intensidade. Daí ele se identificar tanto com o restabelecimento dos seus semelhantes.
               - Modificas os argumentos, mas persistes no tema irmão. Sei que és guardião das ciências e muito te decepciona o fato desses seres não serem capazes de desenvolvê-la. Tens que admitir que talvez eles sejam incapazes disso e que outra espécie possa consolar-te num futuro próximo.
               - Comentário tolo. Percebi que quando acendem as piras, os humanos já enxergam além das chamas. Seus olhos irradiam um mundo de possibilidades. O fogo é o princípio. Em pouco tempo, teu misticismo não será o suficiente para aplacar suas curiosidades. O ciclo se completará e não teremos mais utilidade. Seremos apenas alegorias!
               - Estás delirando agora. Este teu discurso leviano é infundado. Inveja minha posição em relação aos homens. Sou o senhor que eles adoram e esta posição muito me agrada.
               - Inveja não, irmão! Agora sinto que temes ser esquecido e por isso usa de engodos para sabotar meu turno.
               - Sou mais velho que tu e exijo respeito nas palavras que me dirige.
               - Respeito sou eu quem exige. És mais velho e deverias estar ciente dos acontecimentos. É por isso que usa Gabriel como cão de guarda e capacho? Sai daí, fedido. Sinto teu cheiro de longe. Vieste conferir o bem estar de teu dono.
Gabriel revela-se.
               - Gabriel tem livre escolha. Ele me segue apenas por saber que estou certo.
               - E os humanos? Também foram dotados de escolha, mas tem suas vistas limitadas por suas promessas vãs e pelos castigos executados por este imundo.
               - Deixe de absurdos e retira-te. Suas queixas me cansam.
               - Exijo que me dê o que é meu por direito! Ou arrancá-lo-ei de ti a força.
Gabriel se põe a frente, encarando Lúcifer.
               - Gabriel, este ser vil engana-te.
               - Não há engano. Resumido a mito! Não é esse meu desejo. Dá um passo e te destruo.
               - Então não há alternativa.
Brigam.
               - Gabriel! Serás minha espada. Corta-lhe as asas e tira-lhe o prestígio. Serás o tempo, o implacável, aquele que separa os entes.
               - Escapou, mas tenho suas asas em minhas mãos. Vou segui-lo até a terra e terminarei o trabalho.
               - Não. Deixe-o vivo. Será nossa aposta selada. Não passa de homem agora. Vou endurecer o coração dos humanos e difamar nosso irmão. Sua ciência será rejeitada. Deixaremos de ser algozes e passaremos a espectadores. Seus protegidos o perseguirão, sua figura será temida e seu nome proibido.

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